segunda-feira, 4 de setembro de 2017

O LEOPARDO



"Il Gattopardo" (1963-Luchino Visconti)


Há uma ideia espantosa em “O Leopardo”, e é que o palácio salve a miséria. A espécie em extinção que se demora sobre os últimos pedaços de carne, naquele baile de fim do mundo, tem consciência da sua própria morte, mas não conhece a má consciência. Isso é para os chacais e os carneiros que virão depois.

O baile não é um divertimento, apesar de ter sido preparado pela rápida imagem do trabalho no campo, é uma reprogramação da decadência. O tempo desse rendez-vous aristocrático e o discurso de Pallavicini, o general que liquidou o Garibaldi revolucionário e a ilusão duma Itália sem senhores, mostrando a mais completa falta de princípios, são a demonstração de que a espécie merece morrer. Essa complacência perante o destino desgosta o príncipe siciliano.

No espectáculo da vaidade, a juventude está significativamente ausente. Tancredo, o belo sobrinho, é despertado para as tarefas que realmente são as da sua classe: restaurar os signos do passado. É preciso avivar o retábulo da igreja. E o jovem oficial garibaldino não é mais do que uma camisa cor de salmão arrumada. Mas não há que ver aqui oportunismo. O tio compreende que o descendente dos Falconeri se empenhe na revolução do seu país, para que tudo fique na mesma. O cálculo político quando se é jovem e se arrisca a vida nunca é mesquinho. A classe média vai alcançar o casamento, pelo sangue e pela guerra.

Quando Tancredo volta a casa de seu tio, com a farda azul do exército regular e fazendo admirar o anel nupcial, que tão bem resume a nova aliança social, e silenciosamente, sem maneiras, com o cabelo molhado da chuva a bela Angélica corre ao seu encontro, como dizer melhor a paixão política de dois estilos?

O príncipe de Salinas não pode aceitar o cargo que lhe oferecem no Senado. Enquanto que o emissário do novo governo tenta fazer da miséria do povo siciliano um argumento para a necessidade das reformas e acordar no orgulhoso e lúcido aristocrata um sentimento de responsabilidade, Salinas bem vê que a sua classe não pode pensar assim, sob pena de perder a alma. A Sicília foi demasiado tempo uma colónia, não tem já forças para ser outra coisa. O príncipe desposa a ordem milenária, é a outra face da miséria. O lixo à porta do palácio está na natureza das coisas. E diz mais: que nada mudará, a não ser para pior, mas que os que lhe sucederem no seu lugar continuarão ainda a considerar-se o sal da terra. A culpa não cabe neste pensamento.

Unidos num mesmo destino, o senhor e o camponês existem por força do solo pobre e da servidão política ( a bota é para calçar ). Mas a ideia forte é a do corpo e o espírito. O luxo é um “desperdício” religioso. A riqueza e o poder de um são como as paredes do templo que negam a fatalidade económica e o quotidiano peso da existência. É como se a contemplação dos sacerdotes da riqueza impedisse de cair pela lei mecânica a acabrunhada alma do camponês entre as pedras do chão.

O grande felino concebe pois o orgulho e o sentimento da força cruel, mas não insaciável, segura e não duvidosa de si mesma e para os outros despótica. Não se pode deixar de reconhecer grandeza nesta vontade de permanecer igual a si próprio. E mais, se equivale ao desejo da morte como se vê no encontro efémero com a estrela, antes de se perder na viela furtiva. A sensualidade é a última razão.

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