sábado, 30 de dezembro de 2006


Gaia (José Ames)

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

OS ARREDORES DO AMOR


"Alegoria da Pobreza" (Giotto)


"Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

A repressão do amor ilumina os fenómenos dele. Com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade."

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)


O poeta não é definitivamente um discípulo de Poros e recusa o néctar, com medo de dar uma oportunidade à Miséria.

Ele, que foi apanhado em "flagrante de litro".


Bonfim (José Ames)

quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

LOVE ME TENDER


"Coração Selvagem" (David Lynch)


Em "Wild at Heart" (1990-David Lynch), no momento da verdade, no esquálido motel, perdido na poeira do Texas, o cheiro do vómito de Lula invadindo as fontes da vida e da razão de viver, no descalabro moral provocado pela paisagem humana e pela revelação dum segredo daqueles que não se devem revelar, não há esperança.

Lynch parece comprazer-se numa estética do irracional e da violência, porque é ao sonho que ele vai buscar a sintaxe do seu cinema.

Este filme é um conto de horror que acaba num conto de fadas, com aquela canção de Elvis a sublinhar que estamos ainda no irreal do pesadelo.


(José Ames)

sábado, 23 de dezembro de 2006


Virtudes (José Ames)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

O ESPELHO



"Todos os Invernos, Viganella ficava sem luz. Até agora.
Um espelho no alto da montanha reflecte
o sol sobre a povoação."

"O Público" de 20/12/2006


A história desta aldeia dos Alpes Italianos tem uma ressonância platónica.

O que seria preciso para que um grande ideal do passado iluminasse estes tempos de descrença?

Imagino um reflector sobre a encosta do tempo que nos trouxesse os raios duma civilização de oiro.


"Elefante" (José Ames)

TEMPO DE GUERRA


http://www.canopia.com/christmas.gif


Na televisão, o operário da fábrica que vai fechar lamenta que a direcção não tenha descido do seu gabinete para apresentar os seus votos natalícios, como todos os anos fazia.

Mas isso pode significar que ela considerou este ano diferente dos outros, para todos os que ali trabalham, e que aqueles votos poderiam parecer hipocrisia ou provocação.

Há muita gente que pensa que a melhor maneira de lidar com um problema é fazer de conta que ele não alterou nada.

Eu acho muito bem que se interrompam as amabilidades em tempo de guerra.

terça-feira, 19 de dezembro de 2006


Rua das Flores (José Ames)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006


Astorga (José Ames)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006


Badajoz (José Ames)

O PÓSTUMO INSTRUMENTO


www.amnistia.net/news/articles/pinochet.htm

Esta enorme frustração pelo ditador ter morrido sem uma sentença do tribunal deve ser levada à conta de quê?

Temos que acreditar, em primeiro lugar, que o homem de 91 anos é a mesma pessoa que cometeu aqueles crimes e que é capaz de plenamente assumir a responsabilidade por eles.

Mas o importante não é que ele conhecesse a sentença num momento de lucidez no meio do seu declínio físico, é que a Humanidade julgue historicamente os seus actos. Ou acaso Hitler não foi julgado pela "História" apesar de, enquanto Führer, não se ter sentado no banco dos réus?

É óbvio, além disso, que o homem, nem que vivesse mil anos, seria devidamente punido.

Julgar a extrema velhice pelo que fez é quase tão absurdo como julgar a criança pelo que há-de fazer. Vêm-me à memória as palavras de Wyatt Earp no filme de Ford, condenando o velho Clanton.

Assim, o que está em causa neste juízo falhado são as paixões ainda vivas (como se viu no seu funeral), e Pinochet não foi mais do que o póstumo instrumento.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

O TÉDIO DO PARAÍSO


"Um coro de anjos" (Gustave Doré)

"O desejo é a infelicidade do feliz."

(Lévinas)


Isso acaba com toda a esperança numa felicidade extática, com coros de anjos e a contemplação do Trono, como no Paraíso geométrico de Dante.

Mesmo o feliz sente a falta do que o perde.

Ao ouvir esta palinódia sobre o "Apito Dourado" que é um sinal inequívoco de haver paz, quando explodem, não muito longe, a guerra e o caos, ansiar por outra coisa.


"Fuga" (José Ames)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

FACETAS



Revi um destes dias "Topázio" (1969), de Alfred Hitchcock, sobre a crise dos mísseis em Cuba, durante a presidência de Kennedy.

Aquele intróito para explicar a defecção dum militar de alta patente soviético ( ele era "um homem que discordava do aparato militar" da Praça Vermelha) é tão caricatural como o Kerenski de Eisenstein.

Nada disso diminui o nosso prazer, desde que aceitemos que a verdade não é para aqui chamada.

Soubéssemos nós perceber, de igual modo, quando nos estão a contar uma história da carochinha nalguns documentários e telejornais.


Monção (José Ames)

domingo, 10 de dezembro de 2006


"D. João VI" (José Ames)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006


Gaia (José Ames)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

O ESCOLHO DA DIVULGAÇÃO


"Antígona"

"Há quase dois mil e quinhentos anos, escreviam-se na Grécia belos poemas.

"(...) Antígona é o título dum desses dramas. O tema do drama é a história de um ser humano que, sozinho, sem nenhum apoio, se opõe ao seu próprio país, às leis do seu país, ao chefe do Estado, e que naturalmente é morto de seguida."

(Simone Weil in "A Fonte Grega", tradução de Filipe Jarro)


Esta tentativa de levar a grande poesia ao operariado, inspirada na ideia de que é a arte mais pura a que convém aos infelizes, não teve grande sucesso.

Não que Simone não tivesse evitado o tom paternalista na explicação do texto de Sófocles, apesar daquela introdução fazer lembrar um conto infantil.

A simplicidade, como se sabe, é o mais difícil de atingir, sobretudo, quando se julga saber. E o verdadeiro génio só é "natural", se esquecermos o que ele próprio teve de esquecer e de sacrificar para que cada um possa encontrar um sentido na obra de arte.

O grande escolho da divulgação é que a beleza fica pelo caminho e, assim, não se chega a criar um desejo.

Havendo ainda o risco de um desconhecimento, talvez fatal, das grandes obras ser acrescentado duma experiência contrária ao próprio anseio de conhecê-las.


(José Ames)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006


Porto (José Ames)

terça-feira, 5 de dezembro de 2006


(José Ames)

A PUBLICIDADE ENSINA


www.uqam.ca/nouvelles/2005/exposition-design.htm

Lembram-se de "The kid", de Chaplin, em que o pai mandava o miúdo à frente partir os vidros das montras e depois ele aparecia, como que casualmente, com os vidros novos às costas?

Não se pode dizer, claro, que a companhia de seguros que nos aconselha a comprar um seguro para os novos tempos, através duma fotografia em que se vêem os graffiti saltarem duma parede para a chapa do automóvel, esteja a mandar alguém vandalizar por aí, mas a ideia fica lançada, e já passou a barreira mais difícil que é a do inconcebível. Se a própria indústria o diz!

A publicidade tomou, de facto, o freio nos dentes (ver o artigo de Sousa Tavares no "Expresso" da semana passada) e faz sua a conclusão de Ivan Karamazov: "se não existe Deus, tudo é permitido!"

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

O CINEMA DO INSTANTE


Roland Barthes

"No haïku, a limitação da linguagem é o objecto dum cuidado que é para nós inconcebível, porque não se trata de ser conciso (quer dizer de encurtar o significante sem diminuir a densidade do significado), mas pelo contrário de agir sobre a raiz mesma do sentido, para conseguir que esse sentido não se difunda, não se interiorize, não se torne implícito, não descole, não divague no infinito das metáforas, nas esferas do símbolo. A brevidade do haïku não é formal; o haïku não é um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breve que encontra dum golpe a sua forma justa."

"L'Empire des Signes" (Roland Barthes)


A forma justa é uma espécie de graça. Não pode ser obtida pelo raciocínio, nem por eliminação de erros. Compromete, pois, o corpo e aquilo a que chamamos, à falta de melhor, intuição.

O haïku seria assim o nome, se o único das vivências pudesse ter um nome.

Nos filmes de Ozu, por exemplo, parece haver algumas coisas supérfluas, que se repetem sem uma necessidade evidente. Uma rua, a linha férrea, o balcão dum bar. São como que a mão esquerda do tema principal, um baixo confiado às cordas, mas sem demasiada gravidade.

Por muito ascético que seja este cinema, o formalismo está em todo o lado.

E o haïku é o contrário disso, como diz Barthes.

Ou, por outras palavras, é uma forma que só se usa uma vez, no instante.

E então o haïku estaria mais perto da fotografia do que do cinema. É o cinema do instante.


Milão (José Ames)

A EXPRESSÃO DOS SENTIMENTOS


Fernando Pessoa


"A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras, poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)


Entretanto, o mundo avançou muito neste conceito de arte como expressão. E não podia ser de outro modo, sob a influência conjunta da democracia e da revolução tecnológica.

É verdade que hoje todos podem ser artistas e até terem, em instantes, acesso a técnicas elaboradas, ao longo duma vida, por grandes nomes do passado.

A análise linguística e estrutural de tantas obras deu lugar a ferramentas virtuais que, em teoria, permitem imitar qualquer estilo.

Ora, nesse aspecto, qualquer pessoa pode ser mais original do que um computador.

O certo é que não se pode imaginar maior desvalorização da arte, no momento em que a especulação sobre o seu valor de troca no mercado atinge níveis inimagináveis. O que é a prova de que o seu valor intrínseco, o seu valor de uso, para dizer como Marx, se tornou irrelevante, perante essa outra realidade que é a dum sistema de preços.

domingo, 3 de dezembro de 2006

OS ABISMOS DA ACÇÃO


Saint-Just (1767/1794)

"Il est singulier pourtant que je n'aie connu l'art de jouir de la vie que depuis que j'en vois le terme si près de moi."

"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)


Finalmente, no capítulo XXXV (un orage), o ambicioso cede a uma vontade secreta de morte, como outro Saint-Just aspirando pelo sono eterno, e desfecha dois tiros sobre a primeira amante, por quem veio o destino sob a forma daquela carta dirigida ao marquês de La Mole.

Stendhal inspirou-se em dois faits divers. No caso Berthet, podemos seguir o itinerário de Julien Sorel, que acaba com um acto de aparente vingança.

Mas isso não nos pode satisfazer e, de resto, escandaliza o nosso herói.

Apesar de todos os seus "castelos em Espanha" terem ruído com o acto de Madame de Rênal, ditado pelo seu confessor, não se pode esquecer a tensão permanente da vontade de Julien, sempre movido pela necessidade de provar a si mesmo a sua audácia. Esse regime esgota.

Suponho que mais do que tirar desforço duma mulher que chegou a amar e que o amava ainda, era a vontade de acabar com uma vida guindada à força de carácter muito acima duma natureza, no fundo simples e amável, que inspira aquele desfecho.

Nisso, "Le Rouge et le Noir" regista, com o génio dum grande romancista, um dos últimos estertores da energia revolucionária.

UM DIABO CHIQUÉRRIMO



No outro dia vi "O Diabo veste Prada" (2006-David Frankel)

Pode-se julgar um filme pelo seu tema? A verdade é que não.

O mundo da "alta costura" e duma revista de moda que aqui nos é representado é abominável e apresenta os estigmas da voracidade competitiva e das práticas predatórias que são as virtudes supremas exaltadas em certos meios empresariais.

O filme parece tomar partido pela jovem rebelde que descobre, ainda a tempo, o sacrifício que lhe era pedido para ser admirada no "manicómio" de Miranda (Merryl Streep).

E tem outro trunfo na grande prestação da sua vedeta.

Mas, não sei porquê, preferia que ninguém se "salvasse" e a pintura brilhasse em toda a sua hediondez.


"Despaísada" (José Ames)

O VEADO DE BALMORE



"The Queen"(2006), de Stephen Frears, não é só a prodigiosa incarnação de Helen Mirren, no papel de Isabel II, mas também uma meditação sobre a morte da realeza.

As cenas com o veado, em Balmore, são cruciais. Com o jipe avariado no vau do rio, a rainha encontra no grande veado solitário a imagem de tudo aquilo em que acredita, uma ilha dentro da ilha, cercada pelo mundo moderno.

O animal, abatido por um banqueiro, é a seguir objecto duma visita secreta. Na cabeça cortada, com a sua magnífica armação por coroa, Isabel vê o símbolo do seu próprio destino.

Que durante a crise provocada pelos tablóides, por ocasião da morte de Diana, a "princesa do povo", tenha sido obrigada a abdicar duma ética (de sobriedade e dignidade) e daquilo que julgava um direito incontestável, que tenha cedido e "dançado" ao ritmo das parangonas e, no fim da homenagem ao majestático animal tenha que ter sido "política" pedindo ao guarda que transmitisse ao atirador a real congratulação, é o que retrata duma forma magistral aquela "meia hora"(Blair) em que o povo britânico duvidou da sua monarquia.

O povo da sociedade mediatizada é sujeito a tempestades de soundbites e de videobites, como Rousseau, com a teoria das vontades contrárias que se anulam, nunca poderia ter previsto.

sábado, 2 de dezembro de 2006


Virtudes (José Ames)

O CAMPONÊS DEBAIXO DA CHUVA


"Ana Karenina"

Esta chuva faz-me sentir como o Levin de “Ana Karenina”. O som tão doce que embala a minha vigília deve dar olhos a muita choupana. Rejubilo como se fosse um camponês e tivesse já feito muitas preces. A meteorologia talvez acabe com uma religião, mas a chuva, quando tão esperada, não deixa de ser uma divina surpresa.

Não tenho que vigiar o trabalho das minhas mãos e depois a gestação da terra e tanta coisa imprevisível. O camponês define aquilo que não sou. Um corpo que se reparte em frutos mediante um rito misterioso, eis o que o suor humano e a charrua escondem. Este trabalhador é um oficiante musculado. A sua actividade é a mais necessária e a menos suficiente. O seu esforço é pôr a terra a jeito. Não saem formas da sua habilidade, mas favores dos deuses. Não há nada que substitua a atenção pelo próprio corpo. Um gestor não dá mais do que o contrato. Adivinhar a sede e o frio, antecipar-se ao vento e à doença, são coisas de quem vive ligado aos elementos, como uma antena.

É assim com os homens que naquilo que verdadeiramente importa o zelo é exclusivo e pessoal, ou não é nada. Isso pode-se ver pelo menor cuidado que passamos a ter com a nossa saúde, quando se seguem as prescrições do médico. A atenção que nos inspira o corpo saudável e jovem está toda posta na acção e na harmonia. Não se dá a conhecer a força que nos transporta. Mas instale-se a dúvida sobre essa bela saúde, o que é um pensamento da idade, e facilmente caímos num mórbido estado de apreensão. Mais vale então recuperar a indiferença possível na garantia do médico que é suposto conhecer da vida e da morte. Também a terra entregue às suas disposições espontâneas é incompreensível. O homem vem a ausculta-a, corta, separa, reúne o que estava espalhado. Ele simula a acção do acaso e modifica quantidades e espécies. A geometria e o estudo dos astros permitem-lhe pensar o seu trabalho e futurar.

O camponês e o seu pedaço de terra formam um ser semi-consciente. O humano ignora tanto do seu próprio corpo como da alquimia terrestre, mas os frutos podem contar-se. Essa unidade faz com que a atenção se vire toda para a terra paciente e mártir. Todo o simbolismo nutricial e da morte, consoladora como a mãe, se envolve neste apego ao chão e à sua cerca do homem do campo. Por isso, o sócio ou o patrão devolvem o camponês à sua forma humana mais pobre. A exploração intensiva de grandes espaços para alimentar a multidão das cidades não se condói dos sentimentos ingénuos. A multiplicação do homem mais uma vez parece justificar o salto no desconhecido. Perdem-se as raízes, e o homem nunca foi tão livre para nada.

Tem o sabor da utopia este presente, no entanto, bem real. Com a água que cai do céu, enfim, todos somos um pouco homens do campo preocupados com as sementeiras e a cultura.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

O ESPLENDOR DA MEMÓRIA


"O esplendor na relva" (1961-Elia Kazan)


"That though the radiance which was once so bright be now forever taken from my sight. Though nothing can bring back the hour of splendor in the grass, glory in the flower. We will grieve not, rather find strength in what remains behind."

William Wordsworth


Ninguém pode trazer de volta essa hora. Basta ter vivido.

Mas o filme de Kazan é também uma crítica de costumes.

O amor dos jovens é contrariado por um pai frustrado que pretende viver a vida do seu filho (Warren Beatty) e pela obsessão duma mãe na negação da sexualidade (só os homens é que têm prazer), que empurra Norma Dean (Natalie Wood) para uma instituição mental.

Parece implícita a ideia de que se os jovens tivessem ido "demasiado longe" (nas palavras da mãe), se evitaria todo aquele sofrimento.

Mas isso é a ideologia deste filme de 1961 que hoje, por certo, suscitará apenas um sorriso de incredulidade.

E o que se salva é a eterna experiência da juventude perdida e que, apesar disso, vive no âmago duma nova força.


Oleiros (José Ames)

ERA UMA VEZ UM VALE DE LÁGRIMAS...


The diary of Etty

"Uma vez é um Hitler, uma outra Ivan o Terrível por exemplo, uma vez é a resignação, outra as guerras, a peste, os tremores de terra, a fome. Os instrumentos do sofrimento importam pouco, o que conta é o modo de carregar, de suportar, de assumir um sofrimento consubstancial à vida e de conservar intacto através das provações um pequeno pedaço da sua alma."

"Journal 1941/1943" (Etty Hillesum)


Os tempos eram terríveis e aquelas palavras estão repassadas desse espírito de aceitação estóico que Nietzsche tanto verberava, e que é o fundo da sabedoria cristã, a "religião dos escravos".

Em tempos aparentemente mais fáceis, quase ninguém aceita a consubstancialidade do sofrimento. Pelo contrário, espera-se da Ciência que um dia nos liberte dele e até da própria morte.

É por isso que o estado do mundo, em vias de se tornar caótico, só se pode explicar por um qualquer eixo do Mal ou pela diabólica influência de meia dúzia de manipuladores de cordelinhos.

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

A CONSEQUÊNCIA DA PASTA


Stendhal


Na reunião secreta que prepara a missão, junto de um alto personagem na corte de Londres, de Sorel, o qual, graças a uma memória prodigiosa, poderá suprir a mais minuciosa das actas, o primeiro ministro, M. de Nerval, faz uma impolítica aparição.

"É preciso convir que há nele uma muita rara suficiência e insolência até em se apresentar aqui. Ele costumava aparecer antes de chegar ao ministério; mas a pasta muda tudo, submerge todos os interesses dum homem, ele deveria ter sentido isso."

"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)

É o que os ingénuos não saberão nunca antecipar. É que o lugar muda o homem.

Poupar-se-iam o opróbrio da classe política e a costumeira indignação perante as promessas traídas, se conhecêssemos um pouco melhor a massa de que somos feitos.

Eu acredito que um candidato faça promessas de boa fé, mas já é um mau sinal que as faça.


(José Ames)

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

BASÍLICA


Roma

A primeira impressão ao entrar na igreja de S. Domingos (ao Rossio) é a de estarmos numa das muitas basílicas que em Roma são a prova de que nada resiste ao tempo.

Chega a ser comovente o espectáculo das colunas carcomidas contra o fundo liso das capelas que tem uma cor que sempre associo à cidade eterna: o fúchsia. A outra é o ocre velho, como o do palácio de "Conversation Piece".
O sacristão limpava carinhosamente, com um trapo, a cabeça da virgem iluminada. A igreja estava quase vazia, afundada no tempo do seu sinistro que me fez sentir em Roma.

Alguns soldados montavam guarda cá fora - disseram-me que a causa era um concerto de Natal (?). E eu quis ver nessa presença da força um dique humano protegendo a relíquia da cidade voraz.

domingo, 26 de novembro de 2006


(José Ames)

UMA VEZ, GUERRA E PAZ



No interior conhecem-se as grandes famílias: Bezuhov, Rostov, Bolkonski. Constelações com um brilho próprio.

Pierre, que é um bastardo, é em si um carácter colectivo. Um estilo. Nos Rostov, a ligeireza, a generosidade. Bolkonski, a honra, a nobreza, o pensamento. Os grandes espaços são teatro da guerra e da filosofia, ambas unidas no tema do destino e do mistério de Deus.

O firmamento interroga André caído em Austerlitz. Essa primeira morte, sagrada pelo comentário do próprio Napoleão e pelo desgosto da família, permite o regresso. Na noite de tempestade em que Lisa vai morrer do parto. Como se viesse, ele, trazer essa morte devida na sua pessoa. Ao cair nos braços de Maria, a irmã diz: - Que destino! – Como Pierre há-de resumir a tragédia de todos e reencontrar Natacha. A criança é uma mulher grave e amorosa. Essa frase volta: - fosse eu o mais belo e o mais inteligente dos homens, cairia a seus pés pedindo-lhe a sua mão…

O anjo cai no episódio de Kuraguine para elevar André, incapaz de perdoar. O orgulho dos Bolkonski é vencido pelo sofrimento. O velho príncipe chora abraçando André que regressa vivo de Austerlitz. Este, no leito de morte reconhece que não tem nada a perdoar a Natacha. Ama-a melhor. Ela tem tudo para sacrificar. Ele já nada.

A primeira confirmação muda os sentimentos de André. A irrequieta Rostov protesta-lhe um amor juvenil que ele vai sujeitar à prova do tempo. Só Pierre é incapaz de julgar. Senão inspirado, como na noite das fogueiras, quando um soldado francês lhe lembra a sua condição de prisioneiro. Quando o céu lhe comunica a sua força. Quando decide ser o libertador da Europa, esmagando a cabeça da águia imperial. Bezuhov é um cúmplice do estrangeiro. Na corte fala-se o francês do invasor. Napoleão é uma vítima do seu nome. Incapaz de alcançar a grandeza dos acontecimentos. Vencido pela paciência de Kutuzov. Uma cidade coberta de tesouros que valem tanto como areia. Uma capital de nada. O velho general mobilizou a natureza e o tempo. Tornou-se um verdadeiro aliado de Deus. O inverno persegue a retirada. O grande homem salva-se numa carruagem para Paris, abandonando à sua sorte o exército. Kutuzov teria feito toda a guerra sem homens. Mas a vaidade pedia vítimas. Um civil faz de Borodine um teatro divino. É Pierre, que ainda não compreende.

No filme de Bondarchuk, o pescoço de Natacha reflecte o incêndio de Moscovo. Como a reverberação da dor no tracto das palavras inúteis. É sem dúvida casual que essa parte do corpo dê o sinal da catástrofe. Mas ocorre-me toda a significância dessa superfície em que Eros e a morte se encontram. Lugar de corte: da vida e da palavra. É uma interpretação fetichista naturalmente alheia à obra. Pelo contrário, a cena do balcão em que a noite é comentada por Natacha e Sónia para o ouvido irónico de André é um símbolo genuíno. É dessa forma que se deseja ouvir uma confissão de amor ou a revelação do ser amado. Nessa espécie de altar celeste celebrado pela lua, é o monólogo mais puro que se intercepta. Sem intermediários.

A montagem paralela ”avant la lettre” tem um significado especial na morte real de André. A personagem é como que suspensa enquanto os diversos cursos do romance se precipitam. A granada espoletada pelo autor explode num tempo fora da acção. Em off, como se diz no cinema.

E agora um efeito completamente alheio ao livro e ao filme: no momento em que a jovem percebe que o moribundo da sala contígua é o príncipe, e caminha como uma visão branca em direcção ao leito, acendem-se as luzes. Intervalo. Ninguém se lembraria de interromper aí a leitura. Os capítulos são como os molhes da costa. Mesmo que não haja farol, as pessoas sentem a necessidade de os percorrer até ao fim. Agora o projeccionista interveio separando os noivos no tempo real.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006


Porto (José Ames)

O LUXO VITAL




A forma humana perde-se no sono e no orgasmo. Mas um exige abandono total e o outro actividade. Em muitos aspectos, a excitação sexual é uma prova de atletismo que acaba no chão. E o céu levantado pelas multidões dos estádios.

Não é preciso pensar no célebre veneziano nem na pintura que dele fez Fellini para ver que cada homem tende a levar à desmesura aquilo que é o maior luxo que a natureza lhe concedeu. Esse excesso tem como modelo a máquina e não a harmonia do helenismo. Porém, é uma máquina que se destrambelha e pulveriza por fim na falta duma verdadeira função. E o prazer está todo nessa destruição das formas. Se eu quero, o meu corpo corre até ao limite. Aí, a sensação agradável sucede ao esforço. Mas se é o perigo que me faz correr, a ideia de repousar é o maior perigo. E a ideia do limite das forças. Estou em crer que quem, pela vontade se venceu várias vezes no curso dum grande e violento esforço, atinge uma espécie de imaterialidade e de transfiguração do prazer. O mundo deixa de ser um obstáculo e o sono está próximo, que afasta de divagações perigosas. Quer dizer que o próprio regime do corpo se apodera da vontade, quando começou por lhe obedecer.

Acontece com o sexo o que se passa com o poder em geral. A qualidade distintiva daquele órgão é a sua falta de economia. Ele é a criação do espaço e da rareza. Os encontros de acaso tornaram-nos prolixos. Somos uma espécie, contudo, que pensa a sua existência, e o pensamento do sexo multiplica. A capacidade de se dar prazer, independentemente da necessidade de reprodução, teria como inevitável consequência o desperdício e a morte, se não se fizessem sentir as leis do sistema nutritivo e não fosse imperiosa a acção. Só se mata de prazer quem viola o ritmo natural da vida e se dispõe a vivê-la num momento de intensidade terrível. De resto, a potência sexual é função da saúde física e mental, e deprecia-se com o uso infrene. E é como uma lei secreta das sociedades humanas que quando não há razões para adiar nenhum prazer, nem observar a lei do sacrifício sexual, só dos bárbaros pode vir a salvação. O bárbaro não se aborrece porque lhe falta tudo. Até a sua incompreensão da decadência é virtude e força.

É um milagre que o homem não vá até ao fim do seu poder. Não é assim que se experimenta tudo? Mas os homens precisam doutra filosofia. Felizmente o poder absoluto é quase uma utopia, perante um escravo como Epicteto.

Ao levantarem-se os tabus sobre a sexualidade, a sabedoria descobre que o homem não é livre. Que não existe senão pela lei moral. Mas é verdade que o sono nos reconcilia todas as noites com o animal misterioso.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

RETÓRICA CONTRA RETÓRICA




Albert Hirschman é citado hoje num artigo de EPC no "Público".

Este sociólogo tem o mérito de introduzir alguma racionalidade no incipiente debate político que sucedeu ao colapso soviético.

Nunca é demais lembrar que a retórica faz parte da política, e que desde a Antiguidade Clássica se sabe que as questões de forma são decisivas na persuasão dos homens.

AH define uma retórica reaccionária, através de três teses:

a da futilidade (nada mudará, se não mudarem as estruturas), a da perversidade ( as melhores intenções podem ter efeitos indesejados) e a do risco (uma reforma mais radical prejudicará uma anterior reforma, conquistada com muito esforço) e compara-a com a retórica do partido contrário, encontrando entre as duas muita coisa em comum.

Mas porque há uma verdade, ou meia verdade naquela retórica, os amigos do progresso terão de ter em conta os seus argumentos e, se possível, antecipá-los e aprofundá-los.

Com efeito, a tese da futilidade é o argumento utilizado por aqueles que se opõem a todas as reformas, com a desculpa do que o que é preciso é uma Revolução. É o eterno adiamento da luta pela justiça, lapidarmente resumido por Alain: "Os Direitos do Homem suspendem o direito até que termine a guerra pelo direito. Assim, todos estão de acordo, e a discussão académica condu-los a discutir tão-só as nuances."

Por outro lado, negar todo e qualquer efeito perverso é presumir que os homens dominam o conhecimento de todas as consequências dos seus actos, o que está longe de ser verdade. Mas Hirschman cita Racine, para nos precaver contra o vício oposto, de tudo querer prever:

"Tant de prudence entraîne trop de soin. Je ne sais point prévoir les malheurs de si loin." (Andromaque)

A outra ideia depende, como é óbvio, da real importância das medidas em curso e de existir uma verdadeira incompatibilidade.

Em distinguir, pois, a falácia por detrás da razão aparente é que está a arte do polemista.


S. Marcos (José Ames)

IRREALIDADE


http://www.ideacenter.org/stuff/contentmgr/files/
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"(...) contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!"

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)

O poeta refere-se ao espectáculo das ruas e das janelas iluminadas num passeio nocturno.

É quando os sentidos entram numa espécie de abstinência e o mundo como que se esconde do olhar, deixando apenas o perfil das coisas e a memória da luz, que melhor vivemos esse instante em que a realidade dum começo de tudo pode ser criada.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

ZERO VALORES


http://www.markstivers.com/cartoons/Cartoons%202003/
Stivers%205-1-03%20I'm%20into%20nihilism.gif

De que valores fala Eduardo Prado Coelho no seu artigo de hoje, no "Público", em polémica com Mário Pinto?

Receio bem que esteja a sujeitar as palavras a mais uma desvalorização. Se tudo é valor, não há valores.

A versão (sobre o aborto) de MP seria "extremamente discutível e sem qualquer apoio científico".

Quero crer que sim. Mas desde quando a crença num valor, que não existe entre as coisas, nem pode ser medido, tem de ser validado pela ciência?

Estamos a falar do sentido da vida, da acção e da moral, e não de simples factos.

Talvez que a pergunta que espoletou (e não, como se costuma dizer, despoletou) esta profissão de fé relativista, e que é: "Queremos mesmo valores?" não tenha sequer sentido, porque significa perguntar a um homem sem fé se quer ou não tê-la.

Nem todos os imperativos categóricos do mundo permitirão criar um valor, visto que só (mas não é nada de somenos) poderão ser úteis e dar lugar a leis razoáveis.

E, ao contrário do que diz EPC, julgo que a ausência de valores, longe de ser um valor, é própria das almas mortas.

terça-feira, 21 de novembro de 2006


"Demi-rêve" (José Ames)

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

AS OSCILAÇÕES DE HEITOR


Hector dissuaded from battle
engraving by James Fitler (dates unknown), 1795
after painting by Thomas Kirk (1765–1797)


"Este castigo dum rigor geométrico, que pune automaticamente o abuso da força, foi o primeiro objecto da meditação dos Gregos.

(...) Talvez seja esta noção grega que subsiste, sob o nome de karma, em países do Oriente impregnados de budismo; mas o Ocidente perdeu-a e já nem sequer tem, em nenhuma das suas línguas, palavra que a exprima; as ideias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam determinar a condução da vida, já só têm um uso servil na técnica."

"A Ilíada, ou o poema da Força" (Simone Weil) in " A Fonte Grega" (Livros Cotovia)


A palavra e a meditação sobre ela nas tragédias nunca impediram o abuso da força.

O mesmo homem pode, num momento sentir todo o peso do destino, como Heitor, no exemplo de Simone, e, no outro, embriagado pelo sucesso, ultrapassar os limites da prudência.

E se é verdade que a sabedoria do passado não se perdeu completamente, porque existe ainda nos livros, a multidão perdeu o contacto com ela.

Hoje, graças aos triunfos da Ciência, dir-se-ia que a ideia que prevalece nas massas é que, pelo menos para a espécie, não há limites e que a noção de força e a do seu abuso nem sequer fazem sentido para o Homem.


Alfama (José Ames)